No mês de março resolvi inovar no Blog de Escalada, e após tanto tempo sem prestar a devida atenção nas datas comemorativas estarei fazendo uma série de entrevistas com personalidades da escalada mundial.
Personalidades femininas, em homenagem ao Dia da Mulher - 8 de março.
Até o momento três grandes escaladoras mundiais, cada um a seu estilo, confirmaram e responderam à entrevista.
A primeira a ser publicada fiz com a impressionante Isabel Suppé.
Isabel é uma das grandes escaladores de alta-montanha do mundo, e dos grandes destaques dentro do esporte. Pode-se dizer que ela é uma montanhista de corpo e alma, e não conhece a palavra "impossível".
Não mesmo.
No ano passado Isabel Suppé sofreu um acidente ao cair de 400 metros de altura e sobreviver.
Após uma árdua recuperação hoje ela está caminhando com certa mobilidade restrita, porém já está escalando em rocha vias de baixa dificuldade.
Caso você nunca tenha escutado falar de Isabel, chegou a hora.Tive o prazer de poder contatá-la e fazer esta entevista.
Com vocês Isabel Suppé :
1 – Isabel, quando foi que começou a escalar e por quê?
Comecei a escalar quando tinha seis anos.
Meu avô era um escalador pioneiro do Elbsandstein (é uma formação rochosa muito famosa no leste da Alemanha).
Depois da segunda guerra mundial ele conseguiu caminhar do Mar Negro até Dresden. Disse que conseguiu sobreviver ao inverno e as dificultades do pós-guerra impulsionado pelo desejo “de voltar a ver as minhas rochas”.
Conheceu minha avó escalando e continuaram escalando juntos a vida inteira. Depois de fugir da antiga Alemanha Oriental um dia antes dos russos fecharem o muro de Berlim, eles ficaram dois anos num campo de refugiados esperando a permissão de se aposentarem perto dos Alpes.
Preferiam ficar esperando ao invés de morar longe das montanhas.
Meus pais não gostam da escalada e não me deixavam acompanhar meus avós mais do que umas duas vezes ao ano.
Dessa forma, na minha infância não consegui treinar quase nada nem aprendi muita técnica, mas considerei a escalada e a montanha uma parte natural e necessária da vida.
Deixei a Alemanha com 19 anos porque tinha ganho uma bolsa de estudos para os Estados Unidos.
Depois de dois anos e meio na planície de New Jersey decidi fazer meu mestrado em literatura na Universidade de Buenos Aires e fui pra Argentina.
Arranjei um dinheiro para comprar uma geladeira.
Só que quando estive ao ponto de comprar a geladeira, tive uma idéia: pensei que se deixasse a comida na sacada do apartamento poderia usar o dinheiro da geladeira para fazer algo mais importante: uma viagem.
Assim fui para El Chaltén (Patagônia) e minha vida mudou.
Não tinha equipamento de montanha e como era outono, eu era a única pessoa nas trilhas do Parque Nacional. Tinha uma barraca que sequer varetas tinha e todas as noites ficava gelada e enterrada embaixo da neve recém-caida. Ainda assim, El Chaltén foi minha revelação.
Foi lá que entendi que o que queria fazer da minha vida era escalar montanhas.
2 – Depois de tanto tempo escalando, como você visualiza o espaço das mulheres na escalada hoje?
Acho que a montanha é o espaço por excelência e que por isso mesmo e négocio de cada um ocupar o espaço que quiser ocupar nela.
Sobretudo no montanhismo das grandes altitudes ainda tem poucas mulheres (e menos ainda na América do Sul) mas o maravilhoso no montanhismo é que tem espaço para todos e todas que quiserem ocupar um lugar nele.
Pode ser que pra uma mulher seja mais dificil encontrar um parceiro num mundo machista, mas também acho que isso não impede nada.
E só questão de vontade e insistência.
Quando começei com a escalada em gelo não tinha com quem escalar e sabia que nenhum dos escaladores fortes ia querer escalar com uma parceira sem experiencia. Então peguei uns piolets e me prôpus a aprender a usa-los.
Escalei uns picos em solitário e quando desci sozinha do Toclaraju (na Cordilheira Branca, no Peru) fui convidada para escalar o Alpamayo (na mesma região). E nunca mais parei.
3 – Qual é a sua opinião a respeito das restrições de acesso que nós estamos enfrentando na América do Sul?
É uma tristeza muita grande que locais de escalada como por exemplo o Valle Encantado sejam fechados.
Acho que isso tem muito que ver com a falta de informação sobre nosso esporte e a consciência ambiental da comunidade escaladora.
Acho que para lutar contra essas restrições os escaladores vão ter que desempenhar um papel mais ativo na propagação da informação sobre o nosso esporte e também no fortalecimento da consciência ambiental em geral, que é desgraçadamente muito fraca na América do Sul.
4 – Quais seriam seus conselhos a quem quer se dedicar a fazer alta Montanha?
Estudar muito, treinar muito, ser humilde e respeitar a montanha.
5 – O seu acidente foi algo impressionante, como ficou você psicologicamente após isso?
Ter uma pessoa ao lado, uma pessoa que mais cedo no mesmo dia sorria, que tinha desejos e sonhava com um futuro e ver essa pessoa agonizar sem poder fazer nada em absoluto por ela, te faz entender o significado da palavra “impotência”.
Disso não vou esquecer nunca.
Não obstante também acho que uma experiência dessas te faz mais forte.
Um professor meu falou “se não morreu, aprendeu” e acho que isso é muito certo. Sei que tive uma sorte impressionante por ter sobrevivido à queda. Mas as duas noites e dias arrastando-me sozinha pelo gelo tentando procurar ajuda, me ensinaram muito a respeito da importância do papel e da atitude que se adota.
Havia decidido viver para voltar a escalar e acho que se hoje posso contar minha história e se voltei a caminhar e a escalar, então é em grande parte por isso mesmo.
Ainda não voltei a escalar guiando (pois só se passaram 5 semanas desde a última das 10 cirurgias que fiz) e pode ser que quando voltar a guiar vou precisar vencer o medo que sempre há na ponta da corda além das lembranças da queda.
Não obstante não sinto medo ao pensar na minha volta nas paredes de gelo. Só sinto um enorme desejo, ainda sabendo que um dia posso não retornar da montanha.
6 – Quando está se preparando para algum projeto, como é seu treinamento?
A melhor preparação para escalar é escalar mesmo.
Por isso meu principal treinamento é escalar montanhas, além de uma boa aclimatação, já que a minha principal atividade é a escalada em altitude.
Antes de escalar a Face Sul do Mercedário (a segunda maior parede do continente), escalamos o La Ramada e tentamos o Pico Polaco.
A Face Sul do Mercedário foi ao mesmo tempo a preparação e aclimatação para a Face Sul do Aconcágua (onde tivemos que desistir devido ao roubo das nossas botas).
Quando não posso sair da cidade, treino numa academia, escalo rotas esportivas e antes do acidente corria bastante.
Devido à lesão da articulação no meu tornozelo acho que no futuro vou trocar o treinamento de corrida pela bicicleta, que tem menos impacto.
7 – Você está fazendo a revisão final de seu livro, qual vai ser o assunto principal do livro?
É um livro que fala do meu acidente e da minha recuperação, mas acima de tudo trata da vida e da morte, dos desejos que nos fazem viver, da magia das montanhas e dos avós.
8 – Fora a escalada, quais são as suas principais atividades?
Minhas principais atividades são escalar, escalar e continuar escalando.
Também escrevo matérias de montanhismo e trabalho fazendo traduções de matérias de montanha (o português é o quinto idioma que estou aprendendo) e depois do acidente comecei a dar palestras motivacionais
9 – Você possui algum patrocinador para seus projetos de escalada?
Não.
Infelizmente é muito difícil e cansativo achar um patrocinador, especialmente se mora na América do sul.
No passado tive algum patrocínio em equipamento (Garmont, Ansilta), possibilidades de treinamento (academia de Fernando Bellido) e passagens, além do apoio da revista Weekend, mas a maior parte do financiamento dos meus projetos sempre vêm de mim.
A única patrocinadora que tive foi minha avó escaladora, que me deu meu primeiro anorak de gore tex e minhas primeras botas de montanha.
Como acho muito difícil (e escravizante) perseguir patrocinadores, hoje em dia minha aposta para financiar meus projetos de escalada será cada vez mais as palestras motivacionais.
Nunca teria imaginado ser palestrante, mas depois do acidente muita gente me escreveu falando que tinham aprendido algo com a minha história e cheguei a ver que podia ser uma excelente ferramenta tanto pra financiar minhas escaladas, como pra ajudar aos outros já que estou trabalhando num projeto que vai beneficiar os meninos das vilas montanhosas no Paquistão.
10 – Como está sendo o processo de recuperação física de seu acidente?
Comecei a escalar de novo só um mês depois do acidente, com o pé engessado e o buraco da fratura exposta ainda aberto.
Escalava de “top rope” e usava apenas o pé são. Claro que não era o mesmo, mas ajudou-me a não perder toda a força dos meus braços e sobretudo a não perder e esperança de voltar à montanha.
Quando um dos médicos que me tratava falou para mim que não acreditava que ia voltar a escalar, eu respondi que se podia escalar com um pé só, com certeza ia escalar muito melhor com os dois.
Ao mesmo tempo comecei a treinar na academia fazendo musculação e remo, com a perna quebrada sempre elevada e sem usar.
No hospital, durante a segunda internação (fiquei internada 2 semanas na Bolívia e quase um mês na Alemanha) continuei a treinar com um “fingerboard” pendurado em cima da minha cama enquanto meu pé pendurava-se de um “gancho de açougueiro”.
Mas como além da fratura aberta no pé tinha uma lesão nos ligamentos da mão que não melhorava, fui forçada a desistir da escalada por alguns meses e até poucas semanas atrás só podia treinar na academia e começar com a natação, uma vez que o buraco no meu pé finalmente fechou.
Nadar, andar de bicicleta, treinar no elíptico e fazer fisioterapia me tem ajudado muito.
Ainda não estou totalmente recuperada, mas ainda assim graças a não ter desistido de continuar treinando, tenho superado as expectativas que prognosticaram os médicos.
Hoje não apenas caminho, mas voltei a escalar com os meus dois pés. Ainda uso as muletas para chegar nas rochas, mas cada dia é um pequeno progresso, e as escaladas nas rochas brasileiras, na Pedra do Baú e em Andradas, tem ajudado na minha recuperação e vejo que tenho uma boa desculpa para continuar escalando por aqui...
11 – Um acidente parecido com o seu virou filme (Touching the void), houve contato para filmarem sobre o seu?
Houve um contato, sim, mas foi uma coisa muito recente sem proposta concreta e por isso ainda não sei se pode tornar-se uma coisa séria ou não.
Acho que é uma história que tem potencial para ensinar coisas importantes, que pode mostrar a importância da atitude e do desejo de voltar a caminhar e a escalar.
Também pode ser boa para mostrar ao mundo do montanhismo que ainda continua sendo muito machista, que ser mulher não necessariamente significa ser frágil.
Mas transformar uma história dessas em filme também implica o risco de criar uma produção sensacionalista e eu não gostaria disso.
12 – No dia oito de março, é o dia internacional das mulheres. Você teria alguma mensagem direta para as mulheres montanhistas em geral?
O montanhismo continua sendo um mundo muito machista e tenho sentido raiva por isso mais de uma vez.
Mas a pergunta é a seguinte: conseguimos mudar isso falando?
Acho que não.
Por isso penso o seguinte: não percam tempo se lamentando. Falem menos, escalem mais!
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